Caros amigos e amigas,
Em 2014, a CNOD entendeu lançar um projecto de contactos e reflexão intitulado Cultura e Desporto para uma Cidadania Plena, que procurava aprofundar o estado da acção cultural e desportiva das pessoas com deficiência, do seu movimento associativo e do poder local. Procurava saber em que grau o direito constitucional à cultura e ao desporto se exercia pelos cidadãos e como correspondia o Estado a esse direito de todos.
O projecto constituiu-se como um primeiro passo no sentido de aprofundar o conhecimento desta realidade e de melhorar a intervenção da CNOD e do movimento associativo das pessoas com deficiência, alargando-a a uma dimensão essencial para o bem-estar das pessoas. O projecto realizou-se numa área geográfica delimitada – os distritos de Lisboa e de Setúbal – e está agora em fase de conclusão.
No quadro do projecto, foram realizadas cerca de 40 reuniões com entidades diversas do movimento associativo e do poder local. Constituiram-se parceiras institucionais do projecto ou apoiaram-no logisticamente: associações representativas das pessoas com deficiência, como a Associação Portuguesa de Deficientes, a Associação Nacional dos Sinistrados do Trabalho e a ACAPO Lisboa; instituições de solidariedade social, como a FENACERCI, a CERCI Lisboa, a Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo e a Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental, ambas de Setúbal, e a AMORAMA – Associação de Pais e Amigos de Deficientes Profundos, da Amadora; associações desportivas das pessoas com deficiência, como a Federação Portuguesa de Desporto dos Cidadão com Deficiência e a Associação Nacional de Desporto dos Deficientes Motores; e ainda as Câmaras Municipais de Almada, Setúbal e Moita, e o Gabinete do Idoso da Junta de Freguesia de Carnide.
Realizaram-se ainda onze acções colectivas de informação, em Lisboa, Setúbal, Almada e na Moita, e duas mesas redondas, com a presença do presidente do Comité Paralímpico de Portugal, Dr. Humberto Santos, e do presidente da APCAS, Associação de Paralisia Cerebral de Almada-Seixal, Dr. José Patrício. Vão realizar-se ainda três acções finais de apresentação de resultados, em Setúbal, Almada e Lisboa. No final do projecto, terão participado nele mais de 300 pessoas, dirigentes, responsáveis políticos, técnicos e atletas.
Caros amigos e amigas,
Entende-se pela expressão “cultura e desporto” a criação e a fruição artísticas, a dinamização cultural, a preservação e gestão do património e a investigação, os jogos e o exercício físico. O desporto é componente essencial da cultura.
Para além das actividades típicas de cultura e desporto, são ainda também importantes as actividades de lazer e convívio: campismo, praia, passeios, caminhadas, bailes e festas – outros modos de exercício físico e de cultura.
A prática do desporto, o exercício físico, a criação e a fruição artísticas e a acção cultural em geral são uma necessidade dos seres humanos e um direito elementar dos cidadãos. Em Portugal, o livre acesso à cultura e ao desporto estão consagrados na Constituição da República.
A prática desportiva e a acção cultural são factores de saúde física e mental, são factores de integração social, são factores de desenvolvimento pessoal e social e são factores de alegria, prazer e bem-estar pessoal.
O direito à cultura e ao desporto não resulta de uma necessidade exclusiva das pessoas com deficiência, nem é um direito reservado a uma parcela da sociedade; é um direito e uma necessidade de todos os cidadãos. A defesa do direito à cultura e ao desporto é do interesse de todos.
Para que este direito possa ser exercido plenamente, é exigível que ele se materialize em políticas e programas continuados, coerentes e qualificados em concepção e meios.
Para as pessoas com deficiência, a materialização do direito à cultura e ao desporto deve ser transversal a todo o tipo e grau de deficiência. Cabe a toda a sociedade, ao Estado e às organizações responsáveis encontrar as formas adequadas e desejadas de exercício desse direito.
O direito à cultura e ao desporto pressupõem a responsabilidade do Estado em prover os meios para o seu exercício efectivo. Esses meios e a sua administração constituem um serviço público de cultura e desporto, que é em parte garantido directamente pelos serviços do Estado, e em parte garantido pelo apoio do Estado à actividade do movimento associativo popular e a outras entidades que em todo o território nacional dinamizam a acção cultural e desportiva.
O exercício deste direito e a sua contribuição efectiva para uma cidadania plena e para o desenvolvimento pessoal e social pressupõem o acesso de todos à condição de praticantes, agentes e criadores. O direito à cultura e ao desporto não é o direito a ser espectador. É o direito à prática, pois é a prática que garante a boa fruição – o praticante é o melhor espectador. Mais do que fruir, é preciso agir, praticar, fazer e criar.
Uma política de desporto e cultura para pessoas com deficiência não pode ignorar as dificuldades agravadas e muito diversas que estas enfrentam. Uma tal política tem necessariamente de cruzar respostas inclusivas com outras, dedicadas e específicas. Assim, é benéfica e necessária a combinação de:
- práticas inclusivas e integradoras, acessíveis a toda a população, sem restrições;
- práticas de inclusão inversa, pelas quais a população é convidada a participar de programas cujos conteúdos e estruturação têm em conta as particularidades de determinadas deficiências;
- práticas dedicadas, que proporcionam a todas as pessoas com deficiência respostas alternativas específicas, autónomas, independentes e livres de constrangimentos, em todo o tempo.
O poder local tem sido, muitas vezes, em Portugal, o grande dinamizador de programas neste domínio, colmatando as imensas omissões do Estado nas suas obrigações. Por outro lado, o movimento associativo tem encontrado as respostas necessárias que as pessoas com deficiência não encontram nas políticas centrais. A acção do poder local e do movimento associativo é necessariamente incompleta, de alcance limitado e tolhida por imensos constrangimentos, mas sem ela um número ainda maior de pessoas com deficiência ficaria abandonado à sua sorte. Encontramos realidades muito diversas de capacidade de resposta.
Encontramos níveis muito diferentes de acção política neste domínio, por parte das autarquias:
- autarquias que demonstram um grau elevado de organização e de complexidade na resposta às necessidades dos cidadãos com deficiência e outras que se limitam a responder a iniciativas avulsas de instituições locais;
- autarquias que entendem uma política de cultura e desporto como a facilitação de acesso a espectáculos culturais e desportivos e outras que a entendem como participação, prática e criação de todos os cidadãos.
No movimento associativo, encontramos:
- a intervenção de associações que organizam os cidadãos com deficiência e que os representam políticamente;
- a intervenção de associações de pais e amigos, em casos de perda considerável de autonomia;
- e a intervenção de associações ou instituições de solidariedade social, prestadoras de serviços, que servem um determinado grupo de utentes ou clientes que a esses serviços tem acesso.
Também aqui podemos identificar com facilidade umas que intervêm com um alto grau de compreensão política dos problemas da população com deficiência e outras que cuja acção e reflexão é exclusivamente técnica.
Encontramos ainda associações cuja visão da problemática das pessoas com deficiência se coloca no plano da afirmação da cidadania plena e dos direitos nela implícitos, e outras que se orientam por uma visão assistencialista.
Tanto no campo da reivindicação política, como no da dinamização autónoma de acção cultural e desportiva, é desejável que as associações representativas das pessoas com deficiência, as associações de solidariedade social e as autarquias, com os seus conhecimentos, experiências e perspectiva específica, cooperem e estabeleçam redes de parcerias que potenciem a sua intervenção em benefício dos interesses das pessoas com deficiência e do desenvolvimento da sociedade em geral.
Existe uma infinidade de tipos de deficiência e existem graus diversos de deficiência. Uma política de cultura e desporto para as pessoas com deficiência tem de ter em conta todos os tipos de deficiência. Para além disso, nenhuma política para a inclusão pode ignorar ou adiar respostas às necessidades e exigências de graus elevados de deficiência. Não pode haver, no universo do pensamento e da prática sobre a deficiência, realidades que são demasiado incómodas ou difíceis de resolver. Todos têm de ter acesso à cidadania, ninguém pode ficar de fora.
As discussões sublinharam muitas vezes o preconceito, o medo e a estranheza como obstáculos à socialização e bem-estar das pessoas com deficiência e das suas famílias.
Existe um número considerável de associações de pais e amigos de pessoas com deficiência que são, muitas vezes, o único apoio de que estes usufruem. Ao mesmo tempo, o desinteresse, a vergonha e o medo das famílias é muitas vezes referido como um obstáculo à identificação, acompanhamento e integração de pessoas com deficiência.
No horizonte desta reflexão, nem sempre surge a ponderação das imensas dificuldades que enfrentam as famílias portuguesas, no plano social e económico, no plano do emprego e da habitação, no do acesso à cultura e à saúde.
A dependência de pessoas com deficiência das suas famílias e amigos gera ela própria dependência de sentido inverso. Pensar no bem-estar das pessoas com deficiência exige pensar no bem-estar daqueles que os acompanham. As soluções e as práticas procuram e devem procurar o bem-estar partilhado, mas também a autonomia possível de cada um, enquanto indivíduo.
A reflexão sobre as transformações necessárias na sociedade aborda invariavelmente o papel do ensino, da cultura e do desporto no contexto escolar. Na importância que a escola tem na criação de necessidade, desejo e exigência de cultura e desporto, por um lado, e no papel insubstituível no combate à exclusão.
São apontadas falhas e perversão no funcionamento das unidades de educação especial em contexto escolar – que acabam por funcionar como espaço de exclusão dentro da escola. É verificada a inexistência de preocupações de inclusão nos currículos, particularmente no de educação física. É sublinhada a grande carência de formação dos docentes, para o trabalho neste plano.
Estas carências são agravadas pelo empobrecimento que os programas do sistema de ensino público sofreram, com a redução drástica das componentes de educação física e artística e o despedimento massivo de professores.
Os défices de desenvolvimento que a sociedade portuguesa e a acção do Estado apresentam no domínio do exercício da cidadania e do acesso por todos ao desporto e à cultura são gritantes, mas aparecem nas discussões por vezes quase tidas como naturais. Todos reconhecem esses direitos como legítimos, e confirmam o facto de eles se exercerem em sociedades mais desenvolvidas. De igual modo, muitos reconhecem que houve neste domínio um retrocesso de décadas. Mas as responsabilidades políticas por esta situação e a exigência de materialização de direitos de cidadania poucas vezes transparecem no discurso sobre estes assuntos. Há uma fraca politização dos problemas que se enfrenta: são bem articulados os problemas práticos da acção cultural e desportiva inclusiva, os obstáculos morais e culturais que se lhes levanta, mas fracamente articulados o obstáculos políticos, económicos e sociais.
Nos contactos que fizemos, foram raramente abordadas questões como a pobreza endémica na sociedade portuguesa. Foram pouco articulados os problemas do desemprego, da precariedade, das enormes dificuldades económicas da maior parte das famílias portuguesas. Não se cruzam na discussão as condições de vida e de trabalho das famílias, as restrições imensas de recursos, tempo e energia no seu quotidiano.
A discussão centra-se muitas vezes nas dificuldades que uma minoria um pouco mais afortunada de pessoas com deficiência enfrenta no exercício da cidadania e na exigência de acesso à cultura e ao desporto. É poucas vezes referido que a grande maioria de cidadãos com deficiência em Portugal não usufrui de qualquer tipo de acesso à cultura e ao desporto, de forma continuada e qualificada.
Caros amigos e amigas
Existem graus muito diversos de preparação política e técnica no movimento associativo de pessoas com deficiência. Mas em todos os âmbitos encontramos quadros de grande qualidade.
No caso dos jovens quadros, eles são portadores de novas competências organizativas e técnicas. Parecem ter a necessidade de sublinhar as capacidades das pessoas com deficiência, em detrimento da preocupação com as dificuldades.
Parecem ter necessidade de ter a alegria e a confiança como estratégia de trabalho.
Verifica-se um desnível muito acentuado de conhecimento das matérias relativas à acção cultural e desportiva por pessoas com deficiência, entre organizações representativas de deficientes e organizações de solidariedade social. Embora natural, seria desejável que esse desnível se esbatesse, que houvesse maior partilha de conhecimento e experiência.
Surpreendentemente, embora muitas vezes os quadros já se conheçam entre si, parece ser rara a discussão e reflexão no domínio da cultura e do desporto por pessoas com deficiência. Em muitos aspectos, este projecto foi pioneiro, ao juntar pessoas de áreas diversas nesta discussão.
Existe a consciência da necessidade da criação de estruturas de coordenação e de redes de contacto e cooperação.
Existe a compreensão para a necessidade de aumentar a participação dos jovens e das mulheres, na vida associativa.
A cultura física e o desporto têm para todas as pessoas uma dimensão terapêutica, lúdica, de convívio e de lazer. Todas elas são importantes. Entre as pessoas com deficiência, a dimensão terapêutica adquire compreensivelmente um peso privilegiado, mas a cidadania plena só será alcançada se, a par da generalização da prática desportiva a todos os cidadãos, puderem todos também aceder às dimensões diversas que o desporto proporciona.
Na vertente competitiva e de alto rendimento, o sucesso do seu desenvolvimento e dos resultados assentará, em primeiro lugar, numa política de democratização do acesso à prática desportiva e, em segundo lugar, no apoio do Estado ao desenvolvimento e à actividade constante do movimento associativo distribuído pelo território nacional.
Verifica-se uma evidente insuficiência de programas, formação, equipamentos, material desportivo e recursos financeiros para as necessidades actuais dos atletas disponíveis.
Simultaneamente, é ainda maior a insuficiência de atletas disponíveis, devido aos custos e obstáculos que se levantam à simples prática desportiva: o custo dos materiais desportivos adaptados, a indisponibilidade de recintos e de horários, a dificuldade em formar equipas, a insuficiência de formadores e as dificuldades porque passam os clubes.
Diversas associações de âmbito nacional ou local organizam programas de promoção de modalidades através de demonstrações, de iniciativas de inclusão inversa e de empréstimo ou mesmo doação de material. O sucesso exponencial destes programas mostra a insuficência de meios disponíveis, a omissão dos poderes públicos e as lacunas imensas em vastas regiões do país.
A educação física na escolaridade obrigatória não corresponde às exigências de um ensino público desenvolvido e democratizado. Além de existirem muitas escolas sem espaços próprios para a prática desportiva, o facto da disciplina de educação física deixar de contar para a avaliação degrada ainda mais o seu papel na formação dos jovens. Os alunos com deficiência são muitas vezes excluídos das aulas, por falta de formação ou negligência de alguns docentes.
Ao mesmo tempo que o Estado se exclui do papel de garantir o acesso de todos à prática desportiva, o desporto e tudo o que com ele se relaciona sofrem um processo de aguda mercantilização e privatização.
Um objectivo crucial das organizações de pessoas com deficiência, de entidades que com elas trabalham e dos poderes públicos é o de promover a motivação para a prática desportiva e para o exercício físico, vencer a inércia e o medo, apelar ao exercício de um direito.
É urgente multiplicar as oportunidades de inserção rápida e duradoura de pessoas com deficiência na actividade desportiva: alargando a oferta de modalidades, de provas e de espaços para a sua prática, por um lado; promovendo a inclusão generalizada em programas regulares, por outro; e promovendo a organização de programas de inclusão inversa, nas modalidades adaptadas.
Nas condições actuais, para aqueles que buscam a prática desportiva continuada e regular, as grandes dificuldades são os custos com o material desportivo adaptado, as despesas com as deslocações – já que os recintos disponíveis não abundam e ficam muitas vezes longe da sua área de residência -, e ainda os horários disponibilizados pelas administrações desses equipamentos para a prática de modalidades adaptadas ou outras, por pessoas com deficiência.
No plano da alta competição, tem vindo a proceder-se à integração das estruturas desportivas dedicadas à deficiência e dos quadros competitivos próprios em estruturas regulares responsáveis pelo quadro competitivo nacional. Essa integração é vista como desejável e como potenciadora de inclusão. Contudo ela verifica-se sobretudo nas modalidades de maior sucesso competitivo e económico, deixando para trás outras. Além disso, essa transferência de competências e de quadros enfraquece o movimento associativo em geral e o das modalidades menos apetecidas, porque lhes rouba recursos e quadros.
Não deve permitir-se que a integração e a inclusão possam ser causa de enfraquecimento do movimento associativo. Os processos de integração e inclusão não anulam a necessidade de um movimento associativo das pessoas com deficiência forte, activo, munidos dos quadros e dos recursos necessários.
Todos somos produtores de cultura. A cultura viva, obra de comunidades e de indivíduos, constitui-se como factor de alegria, de identidade e de razão para existir. Uma sociedade, em que a uns está reservado o direito a criar e a produzir cultura e a outros o direito a assistir e contemplar, é uma sociedade doente, elitizada, classista e não-democrática. Os cidadãos, e os cidadãos com deficiência em particular, não estão condenados a serem espectadores da felicidade dos outros.
Há uma cultura das pessoas com deficiência? Não. Não, porque ninguém está só no mundo; e a cultura é um universo de partilha. Mas se a cultura nos determina quando nascemos e crescemos, também nós a determinamos com a nossa acção. A cultura é o que nós queremos e precisamos, a cultura é uma extensão do nosso corpo, dos nossos gestos, do nosso pensamento, e liga-se como uma teia aos outros. A cultura que produzimos está aberta à invenção; e sendo sempre um desafio e um esforço, deve ser-nos próxima e amiga.
Quando falamos de cultura, não falamos apenas de obras ou produtos. Falamos do cruzamento complexo de saberes, de formas, de técnicas e hábitos, de meios, de ferramentas, de sistemas de produção. Quando falamos de cultura, falamos não apenas de artes. Falamos de educação, de investigação, de estudo e preservação do património, de partilha e de produção de diversos tipos de saberes.
Falamos de cultura em todos os seus diversos patamares, todos necessários: falamos do trabalho, profissionalizado que deve ser remunerado e com direitos; falamos do trabalho especializado e qualificado daqueles que ela se dedicam dia após dia; falamos da sua dimensão de aprendizagem; e falamos da sua prática pela simples razão da alegria que nos dá.
O acesso de pessoas a espaços culturais ainda se faz com grande dificuldade. Os equipamentos de construção recente contemplam a eliminação de barreiras arquitectónicas e sensoriais do ponto de vista da fruição de eventos, mas nem sempre do ponto de vista da utilização por criadores e técnicos. Tal como no desporto, a cedência de equipamentos restringe-se ao que sobra, a horários e espaços que ninguém mais quer.
A acção cultural e artística surge muito ligada a associações de prestação de serviços, instituições de solidariedade social, abrangendo portanto um universo muito restrito de pessoas. Existem ainda empresas e outras entidades de dinamização artística específica para pessoas com deficiência que, de igual modo, não podem responder às necessidades da generalidade dos cidadãos com deficiência, nem estabelecem com o movimento associativo nenhuma ligação orgânica. Estas respostas, por muito válidas que sejam, não são suficientes para o universo de pessoas com deficiência, implicam uma capacidade económica que muitos não têm e, por isso, não podem substituir as obrigações do Estado neste domínio.
As profundas dificuldades que as pessoas com deficiência enfrentam para conseguir uma proximidade quotidiana com a prática cultural é a mesma que afecta toda a sociedade portuguesa. Os governos que temos tido têm desprezado o direito de todos à cultura, o que é dizer, têm desprezado a própria cultura. Esse desprezo revela-se nas verbas destinadas à cultura nos orçamentos do Estado, sempre em declínio, e perto dos 0,1% do orçamento nos últimos anos; a desarticulação dos serviços do Estado de apoio técnico e administrativo à cultura; o abandono ou privatização de bens e património culturais a cargo do Estado; o desemprego, a precariedade, a emigração e o abandono da profissão que afectam a generalidade dos trabalhadores da cultura; e finalmente, a centralização e elitização dos serviços culturais que conseguem sobreviver.
Os cidadãos com deficiência devem exigir dos poderes públicos, mas também de si próprios e do seu movimento associativo, políticas e programas coerentes, continuados, permanentes e qualificados do ponto de vista conceptual, técnico e organizativo. Os responsáveis técnicos envolvidos devem ter o devido grau de qualificação, não podem limitar-se a simples animadores de tempos livres.
Na área da deficiência, a acção e dinamização culturais parecem não atingir a estruturação e qualificação que encontramos no desporto. Ao longo do percurso do nosso projecto, não se evidenciaram, entre o movimento associativo, mas também na acção dos municípios, o mesmo interesse, o grau de maturidade organizativa, os quadros e o pensamento que encontramos no desporto e no exercício físico. Se é verdade que, no contexto da sociedade portuguesa, tal constatação não deveria constituir surpresa, também é verdade que nem nos podemos conformar com este estado de coisas, nem podemos deixar de assinalar o perigo que, para uma sociedade e os seus cidadãos, representa desistir da cultura.
Não desistir da cultura significa praticá-la apesar das dificuldades, vencer o cansaço e a preguiça. Não desistir da cultura significa procurar os outros, unir esforços, dar vida ao grupo, à colectividade, à associação. Não desistir da cultura significa exigir do estado e dos poderes públicos os meios, as condições, programas continuados e qualificados e a igualdade de acesso que nos são devidos como cidadãos.
Meus caros amigos e amigas
De nada vale derrubar as barreiras sociais, culturais e arquitectónicas que se levantam às pessoas com deficiência, se no final não houver para onde ir, se não houver vontade de ir, se não houver razão para estar noutro lugar.
Nas nossas vidas, há coisas essenciais a resolver; mas o que é urgente resolver, é aquilo que nos preenche a vida. E entre todas as coisas que nos preenchem a vida, que lhe dão sentido, estão o convívio, o exercício físico, os jogos, os saberes, numa palavra, a cultura.
É deste sangue e desta alegria que necessitamos para nos tornarmos livres, e como seres livres, para lutarmos por tudo o que nos falta.